Imprecisão bíblica e João 3:16 (parte 1 de 5)

Por Laurence B. Brown, MD

Descrição: Uma análise do famoso versículo bíblico “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único filho, para que aquele que nele crê não pereça mas tenha vida eterna.” Parte 1: A confiabilidade do evangelho de João.

Para muitos o debate cristão-muçulmano revolve em torno da questão da imprecisão bíblica.  Sou um dos muitos autores que abordaram esse tópico em tudo, desde pequenos panfletos a livros inteiros.  Para o propósito desse artigo, entretanto, gostaria de focar em apenas um exemplo da escritura – um versículo que lança luz em muitos assuntos e argumentos pertinentes.

Cristãos evangélicos – como pilar de sua religião – apresentam João 3:16: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único filho, para que aquele que nele crê não pereça mas tenha vida eterna.” Esse é o versículo que se vê promovido em tudo desde camisetas e adesivos de Tim Tebow e cartazes no esporte e outros eventos públicos.

Qual é o encanto de João 3:16?  Bem, os cristãos evangélicos querem que acreditemos que esse versículo promete à humanidade uma salvação sem esforço, baseada somente na crença cristã – que chama de redenção pela fé.  Mas, como sabemos, a beleza ou apelo de uma proposta não a torna verdadeira.  Posso propor muitas ideias maravilhosas, mas uma pessoa seria tola em acreditar nelas sem verificar a validade.

Então, vamos fazer isso com João 3:16 – vamos dar uma olhada de perto e ver se devemos acreditar nele.  Se for verdadeiro, a salvação barata que oferece deveria ser o negócio de uma vida.  Por outro lado, se nada apoiar sua validade, seríamos loucos em arriscar nossa salvação em “escritura” falsa.

Para começar, quem é o autor desse “livro” do Novo Testamento ou escrito individual da escritura cristã chamada “João”? O discípulo? Contrário ao que podemos esperar, não. Bart D. Ehrman nos diz: “Mateus, Marcos, Lucas e João não escreveram os evangelhos.”[1] Além disso, “Dos vinte e sete livros do Novo Testamento, somente oito quase que certamente voltam ao autor do qual carregam o nome: as sete inquestionáveis cartas de Paulo (Romanos, Coríntios 1 e 2, Gálatas, Filipenses, Tessalonicenses 1 e Filemon) e o Apocalipse de João (embora não estejamos certos de quem era esse João).”[2]

O famoso estudioso da Bíblia, Graham Stanton, concorda: “Os evangelhos, ao contrário dos escritos greco-romanos, são anônimos.  Os títulos familiares que dão o nome de um autor (“O evangelho de acordo com…”) não eram parte dos manuscritos originais, porque foram adicionados somente no início do século dois.”[3] Adicionados por quem?  “Por figuras desconhecidas na igreja primitiva.  Na maioria dos casos os nomes são adivinhações ou, talvez, o resultado de desejos piedosos.”[4] Dificilmente o níveo de precisão escolástica esperado de um livro de revelação.

O fato de que “O evangelho segundo João” não foi escrito por João, o discípulo, não é de conhecimento comum entre os leigos.  Entretanto, Ehrman nos diz: “A maioria dos estudiosos hoje abandonaram essas identificações e reconhecem que os livros foram escritos por cristãos desconhecidos, mas relativamente bem-educados que falavam (escreviam) em grego, durante a segunda metade do primeiro século.”[5]

Várias fontes reconhecem que não há evidência, além de testemunhos questionáveis de autores do segundo século, para sugerir que o discípulo João foi o autor do evangelho de “João”.[6],[7] Além disso, Atos 4:13 nos diz que João era “iletrado”. Em outras palavras, ele era analfabeto.

Stanton apresenta essa pergunta convincente: “A decisão final de aceitar Mateus, Marcos, Lucas e João foi correta?  Hoje em geral há um consenso de que nem Mateus e nem João foram escritos por um apóstolo.  E que Marcos e Lucas podem não ter sido associados dos apóstolos.”[8]

O professor Ehrman é mais incisivo: “Estudiosos críticos estão muito unidos hoje no pensamento de que Mateus não escreveu o primeiro evangelho e nem João escreveu o quarto, de que Pedro não escreveu Pedro 2 e possivelmente nem Pedro 1. Nenhum outro livro do Novo Testamento alega ser escrito por um dos discípulos terrenos de Jesus.”[9] Por que, então, nossas Bíblias rotulam os quatro evangelhos como Mateus, Marcos, Lucas e João? Alguns estudiosos sugerem algo semelhante à marca – o termo moderno de publicidade para a prática comercial de solicitar o endosso de uma celebridade para vender um produto.[10] Os cristãos do século dois que favoreceram esses quatro evangelhos tinham uma escolha – reconhecer a autoria anônima dos evangelhos ou falsificá-la.  O blefe se tornou irresistível e escolher atribuir os evangelhos a autoridades apostólicas, dando uma “marca” autoritativa aos evangelhos de maneira ilegítima.

No fim, não temos evidência de que qualquer livro da Bíblia, incluindo os evangelhos, tenham autoria dos discípulos de Jesus.  Além disso, a maioria dos estudiosos aceita a autoria de Paulo somente na metade dos trabalhos atribuídos a ele.  Independentemente de quem foi o autor do que, corrupções e inconsistências resultaram em mais variantes do manuscrito do que palavras no Novo Testamento!  Por último, até mesmo estudiosos de criticismo textual não chegam a um acordo.[11] Por que? Porque “considerações dependem, veremos, de probabilidades e às vezes o crítico textual deve pesar um conjunto de probabilidades em relação a outro.”[12] Além disso, com relação a problemas textuais mais complexos, “as probabilidades são divididas de maneira muito mais uniforme e os críticos às vezes devem se contentar com escolher a leitura menos inadequada ou até admitir que não há base clara para qualquer escolha.”[13]

Ampliando esse pensamento, “Ocasionalmente nenhuma das leituras variantes se qualificará como original e alguém [ou seja, um crítico textual] será compelido a escolher a leitura que é considerada a menos inadequada ou ceder a correção conjectural.”[14] Hmm.  Correção conjectural, correção conjectural – não é conversa de estudioso para “bom palpite”?

Então talvez não devamos nos surpreender que, assim como Jeremias lamentou as “penas falsas” dos escribas do Velho Testamento, o padre da igreja do século três, Origen, lamentou as “penas falsas” dos escribas do Novo Testamento: “As diferenças entre os manuscritos se tornaram grandes, seja por meio de negligência de alguns copistas ou por meio da audácia perversa de outros. Negligenciavam a verificação do que tinham transcrito ou, no processo de checagem, faziam adições ou deleções a bel prazer.”[15] Essa era uma voz de um pai da igreja do século três, comentando logo nos primeiros duzentos anos de Cristianismo.  Temos que nos perguntar o quanto a situação piorou desde então.  E isso será tema do próximo artigo nessa série.

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